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O manejo com as crianças e suas vontades sempre é motivo de dúvida. Há muitos anos, em quase todas as minhas aulas de desenvolvimento infantil do ponto de vista psicanalítico a pergunta é sempre a mesma: qual a medida entre frustração e gratificação? Essa pergunta se repete nas aulas, no consultório, nas relações entre amigos, nas entrevistas.

Esta é uma dúvida geral de alunos, pais, cuidadores de crianças de todas as idades e mesmo de adolescentes.


Gratificação e frustração são termos utilizados na psicologia da criança e que envolvem em ambos os casos, excesso ou falta: excesso ou falta de frustração; excesso ou falta de gratificação.


Há quem pense que crianças devem sempre ser gratificadas, sempre atendidas naquilo que consideram uma necessidade (novos brinquedos, mais uma bala...). Sabemos que na nossa contemporaneidade o excesso de estímulos pode confundir essa medida a quem é responsável pelo cuidado das crianças.


Façamos uma breve análise de necessidades:


O bebê e a criança ao manifestarem suas necessidades biológicas de fome, higiene, calor e psicológicas de carinho, olhar, colo, demandam do seu cuidador uma resposta que se traduz em um investimento. Este investimento vem da sua própria capacidade psíquica de ser continente das demandas (necessidades) do bebê, da criança. Este investimento tem o poder de transformar o choro angustiado do bebê em calma e integração, em vida.


Então, gratificação e frustração são investimentos. Ambos são necessários, naquela medida em que sou perguntada qual é. Podemos ter algumas pistas.


O que pode acontecer com alguém que é sempre gratificado, sempre ganhando, triunfando, sem nenhuma limitação? Por outro lado, o que pode acontecer com alguém que seja sempre frustrado, sem a possibilidade de ser atendido minimamente? Podemos imaginar que em ambos os casos, excesso e escassez, teremos sofrimento, atual e/ou futuro.


Nos dias de hoje, falamos muito sobre as dificuldades na educação das crianças frente a um mundo hiperconectado, rápido, muitas vezes fútil, superficial, consumista. Neste cenário é demasiadamente humano culpar o externo pelas dificuldades que temos na tarefa de desenvolver crianças rumo à independência de sua vida adulta.


Sim, pois todo o desenvolvimento infantil visa apenas um objetivo, que resume todos os demais: tornar-se adulto com a menor quantidade possível de prejuízos. Como criar crianças, desenvolver pessoas, futuros cidadãos que tenham respeito pelas outras pessoas e pelo meio-ambiente?


A psicologia não pode e nem deve fornecer respostas prontas, receitas. É importante respeitar cada subjetividade e as singularidades de cada família. Porém, há alguns pontos que podem ser comentados e que pode ajudar na reflexão de cada cuidador e de cada família.


A psicanálise, pelas lentes do senso comum, é vista muitas vezes como uma teoria simplista e pessimista, cujo objetivo principal seria a responsabilização dos pais ou do ambiente pelos prejuízos ocorridos no desenvolvimento emocional das crianças. Porém, quando avançamos do senso comum e adentramos a teoria em sua aplicação prática, seja no atendimento clínico ou na observação da realidade, notamos que o desenvolvimento emocional tem duas vias: a do atendimento do ambiente e da personalidade do bebê.


Por que os desejos da criança não podem vencer sempre?


Frases comuns, sentimentos comuns: ?não sei mais o que fazer com fulaninho?, ?não consigo dizer não?. E o que vi e vejo, é uma criança perpetuando seu status de bebê, ao que Freud adjetivou como a majestade, em sua frase clássica, ?a majestade o bebê?


O bebê é uma majestade em seus primeiros tempos e assim deve ser, já que a casa toda se organiza em torno dele e de suas necessidades primárias e secundárias, de cuidados básicos e de amor. Esses cuidados são base da confiança da criança em si mesma e nos demais.


Perpetuar o status de bebê majestade significa que o investimento para o crescimento não foi suficiente: foi escasso ou excessivo. Nos dias de hoje não vemos apenas crianças com estas características, mas vemos igualmente adultos que mantém um status de onipotência e egocentrismo típicos dos primeiros anos de vida.


Podemos compreender o desenvolvimento das crianças sob vários prismas. Um deles nos permite pensar em dois importantes períodos: dos zero aos dois anos e dali até ou 6 ou 7 anos de idade, dependendo da maturidade de cada criança.


Na fase dos zero aos dois anos de vida podem ocorrer ainda muitos equívocos, pois a maioria das pessoas não imagina o quanto as crianças absorvem o ambiente em que estão inseridas. É uma fase que engloba o conhecimento inicial do mundo, dos seus cuidadores iniciais, um período de muito choro, alimentação, higiene, cuidados intensos que devem culminar na aquisição da motricidade, da linguagem e da busca da independência.


Depois disso, a criança começa a diferenciar os papéis das pessoas ao seu redor e os seus, reconhecer o outro e duas diferenças se for tratada com ética e respeito. Só assim poderá reproduzir essas ações com seus pares na escola, no seu novo meio social que é uma prévia da vida social adulta.


Freud e Winnicott ajudando a entender a questão


Freud, em sua obra O futuro de uma ilusão (Vol. XXI, Obras Completas de Sigmund Freud, Ed. Standard, Imago, 1927/2006, p. 18) um texto absolutamente atual, nos ajuda a pensar sobre esse equilíbrio ao falar em civilização:


?Gerações novas, que forem educadas com bondade, ensinadas a ter uma opinião elevada da razão e que experimentaram os benefícios da civilização* numa idade precoce, terão atitude diferente para com ela. Senti-la-ão como posse sua e estarão prontas, em seu benefício, a efetuar os sacrifícios referentes ao trabalho e à satisfação instintual [pulsional] que forem necessários para sua preservação. Estarão aptas a fazê-lo sem coerção e pouco diferirão de seus líderes. Se até agora nenhuma cultura produziu massas [grupos] humanos de tal qualidade, isso se deve ao fato de nenhuma cultura haver ainda imaginado regulamentos que assim influenciem os homens, particularmente a partir da infância" (Freud, 1927 p.18).


A civilização* (O futuro de uma ilusão, Vol. XXI, Obras Completas de Sigmund Freud, Ed. Standard, Imago, 1927/2006, p. 15 e 16) a que Freud faz menção é a expressão pela qual significa tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima da condição animal. Freud não distingue ente cultura e civilização [do alemão Kultur]. A civilização inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza incluindo as instintuais [pulsionais] e inclui todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros.


Quando Freud afirma que a civilização inclui a capacidade de controle das foças do seu instinto, isso não ocorre de forma irrefletida: é necessária a presença de um outro que ajude a equilibrar a tensão dos desejos ilimitados dentro da criança (brinquedos novos, mais uma bala...). Não à toa as crianças parecem em estado de morte quando são negados seus desejos: gritam, batem pé, se jogam ao chão... Todos estes atos estão chamando seu cuidador e seu ambiente à responsabilidade de contê-lo, de forma amorosa e suficientemente boa, um termo usado por Winnicott para responder a nossa pergunta inicial.


Sei que dirão o quanto este não é difícil. Para tentar ajudar um pouco mais, finalizo com outro conceito de Winnicott, a função continente: a capacidade dos cuidadores e do ambiente de sustentar a criança em suas angústias - ajudar a criança a integrar seus impulsos e transformá-los em algo mais produtivo, suportando aquele estado da criança a fim de que ela passe por esse momento com a menor sensação possível de destruição, dela mesma e do ambiente.


Nada pior para uma criança do que a realização de sua fantasia de controle do ambiente, como se tudo aquilo que ela deseja, de fato, acontecesse. Por isso ela precisa do corte, do não, da continência através do que é suficientemente bom naquele momento.


A sensação de tudo poder dificulta o crescimento rumo à independência necessária da vida adulta, que envolve a capacidade de frustração, diariamente: mais brinquedos e mais balas, agora com outras roupagens.